Em criança, ainda ouvimos contar em Arranhó muitas histórias povoadas de lobisomens, bruxas, e almas, ecos da superstição e crendice próprios dum tempo com longas noites de escuridão, sob a fraca luz dos candeeiros a petróleo, que potenciava os medos e as fantasias ancestrais, quando as pessoas se juntavam em casa e alguém começava a contar histórias para entreter ou impressionar os ouvintes.
Transcrevemos, a propósito, o testemunho directo e vivencial duma sobralense, que descreve de forma notável o ambiente e o tipo de histórias que eram afinal comuns não só na nossa região como no mundo rural português até à primeira metade do séc. XX.
Eis o testemunho [1]:
«Nos serões, no tempo em que eu era uma criança, de em vez quando, o tema de conversa eram as crendices, pessoas que na altura rondavam os oitenta anos, contavam as histórias que tinham ouvido aos seus antepassados. Histórias de lobisomens, de almas do outro mundo e de bruxas.
Essas noite eram de pesadelos para mim, tudo aquilo assustava, ninguém tinha visto, mas tinham a certeza que existiam, porque o amigo de um vizinho que era primo do outro que viveu na terra onde aquilo se passou, que contava e recontava e passava de boca em boca, até chegar àquela noite em que eu escutava e me amedrontavam…porque acreditava.
Dizia a senhora que algures numa encruzilhada entre Fetais e Martim Afonso, um senhor que pelo seu trabalho tinha que se deslocar e passar por aquela encruzilhada, numa noite escura de Inverno foi interpelado por um ser esquisito, meio homem meio lobo e que o perseguiu, o homem correu com toda a velocidade que conseguia e chegado ao povoado o ser desapareceu, outros homens também passaram pela mesma situação, naquela ou noutras encruzilhadas. Seria um lobo e não um lobisomem, seria o álcool que lhes turvava a visão, ou somente, o medo com que ia e um gato lhe pareceu um lobo? Mas, posso afirmar que tudo era contado com a convicção de que os lobisomens existiam.
Depois seguia-se a história de almas de outro mundo, que só vinham para atormentar, nunca faziam nada de bom, fulano tinha visto a alma de um homem que em vida tinha sido muito mau e que resolveu vir atormentar os pobres a quem atormentou a vida inteira. Para encerrar vinha a história de que as almas deles não tinham sossego e que andavam a vaguear.
Havia os cépticos que não aceitavam isto como verdade e lembro-me de contarem a história da mãe da Julieta, uma jovem que morreu aqui na vila, que dizia a quem falava em almas do outro mundo: Quem me dera que houvesse essa aparição e que a minha filha me aparecesse, para eu poder matar as saudades que tenho dela.
Claro, que ela nunca mais viu a filha, um desgosto para toda a vida.
Quanto às bruxas ainda existiam no meu tempo de criança, essas eram vistas aqui e acolá, a fazer males para acabar casamentos, para acabar namoros, para zangas entre amigos, para que perdessem fortunas e tudo o que de mal se pudesse fazer. Nas conversas havia um chorrilho de maldades que as bruxas faziam e que eram um perigo para a sociedade. Nunca acreditei em bruxas, mas que há…há!
Tudo era contado com factos observados, que tinham acontecido há alguns anos, e que por transmissão oral chegaram aos dias em que eu era uma criança medrosa.
Uma história de que me lembro é que um dia de trovoada em que o céu estava muito escuro, alguém estava revoltado e ralhou contra o tempo, dizendo que raio de dia tão negro: O céu abriu-se e um ser que devia ser o diabo, gritou-lhe “negra tens tu a tua alma” e o homem morreu ali mesmo. Toda eu tremia ao ouvir esta e as outras histórias, mas neste caso, julgo que o homem tenha sido fulminado por um raio.
Não havia o cuidado de evitar de falarem destas crenças longe dos ouvidos das crianças, quem as contava era com a naturalidade e com a convicção de eram verdadeiras aquelas histórias e eu acreditava tanto que me causava um sofrimento atroz.
Mas, senão as tivesse ouvido como podia eu estar aqui a contá-las…» [2]
E de facto assim também acontecia em Arranhó, e estas histórias de mistério passavam de boca em boca perturbando o sono de muita gente.
Notas:
[1] Maria Alexandrina Reto, Crendices, 17.12.2013.
[2] idem anterior
#Usoscostumes
© Direitos Reservados, Reprodução Proibida | Arranhó Memória e Gratidão, compilação e foto de José M. Ferreira Luiz