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Postal de Arranhó N° 211: Um estranho caso noturno

Com esta imagem duma “barricada “popular” à entrada da capital, e, a propósito da proximidade das comemorações dos 50 anos do 25 de Abril, recordamos uma memória monográfica [1] duns estranhos casos noturnos ocorridos em Arranhó:

«Estávamos em 1975. Por volta das 22 horas a povoação é sobressaltada com a estranha notícia que helicópteros silenciosos pulavam do moinho do Custódio para o Alto da Cruz, e dali para o moinho do Ferro Velho. Silenciosos, um de luzes verdes outro de luzes vermelhas.

Ponto de situação. Dá-se o 25 de Abril há cerca de um ano e no campo político e militar, as forças de direita ameaçam o seu golpe. Dá-se a intentona a 28 de Setembro [2] com a chamada manifestação da Maioria Silenciosa seguida de outra em 11 de Março de 1975. [3]
O clima é extremamente tenso, a esquerda avança e a direita ameaça. [4] É neste ambiente que aparecem os estranhos aparelhos a cruzarem os céus de Arranhó.

A povoação é alertada e alarmada pela rapaziada que de noite andavam a jogar futebol no Alto do Espargal e que presenciaram as evoluções. Mesmo estes ficaram aterrados quando um dos aparelhos apontou na sua direcção.

Alertada a GNR e o COPCON (Comando Operacional do Continente) [5] de que era comandante o “brigadeiro” Otelo, fazem deslocar uma viatura de Mafra, da Escola Prática De Infantaria. O responsável pela patrulha disse que em Portugal apenas dois helicópteros podiam andar de noite e que esses não haviam levantado, e, além do mais, não eram silenciosos. Segundo os mesmo só podiam vir de Espanha, [6] o que não era muito provável, devido às dificuldades de abastecimento, ou do mar, neste caso também muito estranho por não terem sido detectados.

A população ficou alvoroçadíssima e muita gente já não dormiu. Às 2,30 horas da madrugada, esses estranhos aparelhos voltaram aos seus exercícios. Em Agosto de 1975 nada mais se soube sobre o caso, a não ser que do mesmo modo já tinha havido alarme de aparelhos em Runa, uns meses atrás, e em Alverca mais recentemente. Inspeccionados os locais pela população nada conseguiram detectar, armas ou qualquer outra coisa. [7]

Vejamos o que alguns dias depois se passou: Já noite caída, no moinho do Ferro Velho surge uma luz. Não esquecida dos recentes acontecimentos, a população de novo se alvoroça. Vai o Zé Luis e o Mário do Rendas a Ajuda e perguntam à Maria Amélia se sabia de alguma coisa. Na taberna do Alfredo Zé Padre dizem nada saberem. Entram de novo em contacto com o COPCON e contam o que se passa.
Entretanto, ouvem uma forte detonação, e a população fica ainda mais amedrontada.

Desta vez não havia razão para telefonar para o COPCON se se tem que esclarecer o caso. Na taberna do Alfredo Padre, em Ajuda, sete rapazes apostam que são capazes de irem ao moinho do Ferro Velho àquela hora. Faz-se lembrar que o caso dos helicópteros estava muito recente na memória de todos. Para provarem aos presentes que lá iam, levaram uma lanterna que ao lá chegarem, foi acesa. Tudo estava muito certo não fora o alarme que veio a provocar. A situação complicou-se ainda mais, porque um dos sete transportava um morteiro de foguete sem participar aos restantes, e, no momento estão faz explodi-lo! Os outros seis apanharam um “cagaço” espectacular, e era vê-los a atirarem-se para dentro de uma vinha que há ali perto, na tentativa de se esconderem.
Esta morteirada foi ouvida por toda a gente e houve mesmo quem chegasse a dizer: “Já morreu alguém!…”
Carlos Belmoço e companhia, carregam as suas caçadeiras e dirigem-se para o local, mas foram esclarecidos antes de lá chegarem.»

Esta é uma história intrigante que até podia ter corrido mal, mas felizmente assim não foi. O que é certo é que tanto quanto sabemos, ainda hoje o caso não está esclarecido. Como muitos outros acontecimentos da história contemporânea caiu no esquecimento com o envelhecimento dos protagonistas. Talvez esta evocação desafie alguém a contar-nos mais…

Notas Diversas:
[1] Retirado de: Lourenço, Carlos Alberto Alves | manuscrito dactilografado, Monografia da Freguesia de Arranhó, 1976.
[2] Tratava-se de uma manifestação de direita inicialmente autorizada, mas depois interditada pelo MFA. De madrugada tiveram lugar várias detenções entre os organizadores e ao mesmo tempo ocorreram grandes manifestações populares a barricar as estradas de acesso a Lisboa.
[3] O chamado 11 de Março foi uma tentativa de golpe de Estado por parte de militares spinolistas, que foi aproveitada para aprofundar as políticas revolucionárias com uma vasta campanha de nacionalizações de bancos, seguradoras, e das principais empresas nacionais.
[4] À época o ambiente político e social fervilhava de boatos e ameaças, criando um ambiente de forte divisão e desconfiança entre as pessoas, uns “progressistas” outros “reacionários”, num clima de pré-guerra civil.
[5] o COPCON foi um comando militar para Portugal continental criado pelo MFA em 1974, mas que em 1975 durante o PREC vai ficando cada vez mais comprometido com a causa revolucionária, acabando por ser extinto após o golpe de 25 de Novembro de 1975.
[6] O ambiente de desconfiança política era grande, e temia-se um golpe contra-revolucionário apoiado pela Espanha do General Franco.
[7] Um dos enormes motivos de desconfiança e medo na época, residia na existência de notícias de grandes quantidades de armas retiradas dos quartéis e distribuídas a populares.

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© Direitos Reservados, Reprodução Proibida | Arranhó Memória e Gratidão, compilação e foto de José M. Ferreira Luiz