Já falamos dos carroceiros noutra ocasião, mas vale a pena acrescentar uma memória recolhida pelo Carlos Lourenço [1] sobre estes arranhoenses:
«A vida dos comerciantes era dura e até certo ponto arriscada. Dada a morosidade do transporte, tinham necessidade de sairrem às duas ou às três horas da madrugada, o que os sujeitava aos riscos de serem assaltados, mas entre tantos que houveram e durante muitos anos, não se consta de ter havido um único mau encontro que fosse.
Se de madrugada iam para Lisboa, para a venda, nessa noite o macho, o animal por excelência para a carroça, tinha a alimentação reforçada com milho, fava ou alguma palhada, preparada dentro dum canistro (canastrão pequeno e de vime mais fino) onde a palha de trigo, molhada, era posta em pequenas camadas intervaladas por borrifadelas de sêmea, com alguma fava à mistura.
De madrugada, de sono nos olhos e lanterna na mão, havia que se “ingetar” o macho à carroça, pondo-lhe o arreio sobre o lombo, passar as correntes, põr-lhe a coelheira e a cabeçada, atar o silhote, acender a lanterna e põr as rodas ao caminho.
Tomando as guias e dando uns estalidos de língua no céu da boca, com os dentes cerrados, como o coachar duma rã, punham todo o conjunto em movimento, e quer chovesse àgua ou estrelas, mergulhado na negrura dda noite, lá se ia a caminho da cidade ou arredores.
Uma fraca luz de lanterna, a passada ritmada do quadrúpede, o ruído das rodas trilhando as cabeças das pedras do caminho ou os ciscos da berma, iam marcar na estrada a sua presença.
Ao raiar do dia, já ele estava a ser tratado por “saloio”. A vida destes laboriosos vendedores ambulantes era dura, durante horas a fio se mantinham ao lado da carroça com uma mão no varal e outra nas rédeas, quando necessário fazendo força ao lado do animal,se o declive do terreno ou a carga o impunham, e isso era sistemáticamente necessário na ladeira da pedreira Branca, em São Roque, na Calçada de Carriche ou na ladeira da Pontinha. Às vezes tmbém ia sentado no varal, de lado, outras sobre o assento, com este puxado bem alto para ficar sobre a carrada que ia de caculo, resquardada por panos.
Por dois, três ou quatro dias, lá ia andar pelas ruas lançando ao ar bem alto, sonoros e estridentes pregõepara que as senhoras e as criadas tomassem conhecimento da sua presença.
– Cá vai o saloiuuuuu…!
– Lindas peras maduriííínhaaaaaas….!
– Quem é que quer maçã reineetaaaa….?
Cada qual usava o seu estribilho de acordo também com o que trazia.
E lá ia andando, apregoando, atendendo freguesas,vendendo quilo a uma, quilo a outra, até fazer desaparecer os quatriocentos ou quinhentos quilos da carga, transformando-os nalguns escudos de lucro, amiudadas vezes correndo com a rapaziada que ousada e descaradamente queriam comer fruta à conta do saloio.
Vinha a noite e com esta a vida nas estalagens.
Ecolhido o gado nos estábulos, dada água e posta comida nas manjedouras, iam jantar. Só aqui é que se encontravam alguns conhecidos para cavaquear um pouco.»
Esta descrição pitoresca reflecte exactamente o modo como eram descritas as recordações na linguagem comum arranhoense, e são uma preciosa memória da vida dos nossos laboriosos antepassados.
O nosso avô paterno, de seu nome Manuel Francisco Luis, também andou nesta vida, e uma ocasião teve mesmo um acidente com a sua carroça nas proximidades do chafariz Cara Linda que lhe deixou uma mossa numa perna.
A imagem é de fraca qualidade mas é um documento precioso, tirada à volta de 1930, mostra o Joaquim d’Além, trajando como um saloio. Mal se percebe, mas estão presentes o saco com a ração no chão, a lanterna, a lata para dar água ao animal e molhar as rodas.
Notas:
[1] LOURENÇO, Carlos Alberto Alves | Monografia da Freguesia de Arranhó | manuscrito dactilografado | 1976.
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© Direitos Reservados, Reprodução Proibida | Arranhó Memória e Gratidão, compilação e foto de José M. Ferreira Luiz