QUASE MEMÓRIAS – parte 4
Continuamos a respigar na memória os factos que estão na origem de Irene Lisboa ter “entrado” na vida arranhoense.
Em boa verdade, no início da década de 80, era muita a indiferença sobre a figura de Irene Lisboa em Arranhó, e no próprio concelho de Arruda dos Vinhos. Não era uma prioridade.
Assim, a nossa persistência na causa de relevar a importância da figura de Irene Lisboa para Arranhó, sempre encontrou “resistências” e “indiferenças várias”.
Felizmente na época houve quem percepcionasse a importância de dar relevo a tão notável figura, para valorizar Arranhó e os arranhoenses. Foi o caso do meu querido tio Francisco Soares da Encarnação, que, enquanto vereador do Município de Arruda dos Vinhos, teve a intuição de “agarrar” a ideia que eu vinha defendendo, elevando-a para um patamar da sua implementação.
Só para dar uma ideia das hesitações e dúvidas que iam criando resistências à aceitação de Irene Lisboa, lembro aqui um episódio muito significativo.
Em 29 de Setembro de 1984, tivemos uma entrevista [1] com a Junta de Freguesia de Arranhó onde estiveram presentes o presidente Francisco Faria Jerónimo, o secretário João Manuel Dinis Marques, e, ainda, o vereador Francisco Soares da Encarnação.
Como relata a FPA: «aqueles responsáveis produziram respostas duma franqueza e frontalidade notáveis, não evitando aqui e ali a polémica, que merecem a melhor atenção de todos nós e a reflexão cuidada evitando juízos precipitados»… [2]
Realmente a entrevista é histórica, e dela transcrevemos hoje a parte respeitante á “polémica” sobre que nome dar ao Largo central de Arranhó a que se estava a dar então um novo arranjo urbanístico [3]:
FPA – «No mesmo boletim vinha referida a intenção de vir a dar o nome da escritora ao Largo. Nós próprios no nosso número de Janeiro de 1975 demos um lugar de destaque à sua vida e obra literária. Podem adiantar-nos as razões da escolha e ou a forma como pensam vir a concretizar este projeto?»
Francisco Jerónimo – «Bom… eu acho que está bem saber o nome…»
Francisco Encarnação – «Essa notícia que veio no Boletim Municipal e que versava especialmente sobre a nossa freguesia… o escrito que vem lá sobre a nossa freguesia foi essencialmente elaborado por mim com colaboração da Junta, à qual eu dei conhecimento. […] Eu tinha de facto descrito, referindo-me ao Largo central de Arranhó entre parêntesis futuro Largo Irene Lisboa. Porque entendo sendo essa figura de escritora uma figura nacional, e, tendo nascido na nossa freguesia, achei por bem que até de certo modo nos honra termos na nossa freguesia uma pessoa ilustre… e o Largo central da terra tivesse o seu nome, visto que ela nasceu na nossa freguesia.»
FPA – «Enfim, aquele Largo será sem dúvida, o postal ilustrado da nossa terra. Como pensam conjugar as necessidades de criar um local de convívio, aproveitado para as festas anuais, o apeadeiro da RN, a falta de um coreto permanente, o jardim, árvores de sombra, e, porque não, um busto da escritora?»
Francisco Jerónimo – «De momento não tínhamos pensado nada disso…»
Francisco Encarnação – «Por acaso, até essa ideia acho bem lembrada… enfim temos de contar com a maneira das pessoas verem o problema… Porque se talvez já só falar no nome parece que já alguém ficou a fazer certas conjunturas, pelo menos a não absorver bem a ideia… se fôssemos pensar ou dizer, amanhã, que de certo modo podia justificar-se um busto… então é melhor nem falarmos nisso…
Mas eu diria que acho uma ideia pertinente porque por exemplo a Calhandriz tem lá um bispo [4] que nasceu na freguesia num busto em bronze que, de certo modo dignifica a terra. As pessoas chegam ali e veem “aqui nasceu o bispo…”
Amanhã, se nós pudéssemos, eu achava até uma boa ideia (se a querem lançar)… porque não quero lançar mais confusões… mas era realmente uma ideia…»
Francisco Jerónimo – «Era uma ideia ótima!»
Francisco Encarnação – «Amanhã, que isto se pudesse realizar cá… e não era nada que outras terras o não tivessem já feito com outras figuras naturais da sua região…»
Francisco Jerónimo – «Isso era uma das coisas enriqueciam mais o Largo… mas hoje não se pode estar a pensar já nisso… porque amanhã outras pessoas diziam logo assim: “fomos gastar dinheiro onde tínhamos outras coisas…”»
Francisco Encarnação – «É uma ideia que pode ficar!»
Francisco Jerónimo – «Mas pode ficar… outros que venham atrás… através dessas ideias, depois façam…»
Este diálogo é muito rico e revelador, sobretudo hoje que sabemos tudo o que efetivamente acabou afinal por ser concretizado. Mas também mostra a insensibilidade cultural e as “resistências” que muitas vezes atrofiam boas ideias, suscitam polémicas inúteis, e condicionam o progresso duma comunidade.
Para clarificar um pouco o “ambiente” da entrevista, referimos que na época um dos grupos de opinião em Arranhó, mais politizado, defendia acerrimamente que em vez do nome da ilustre conterrânea, se desse o nome de Largo Fernando Luís Barreiros dos Reis, [5] também conterrâneo, e que tinha sido vítima dos disparos da PIDE no dia 25 de Abril de 1974…
As hesitações e receios dos autarcas daquele tempo assentavam nestas “polémicas” pouco esclarecidas, hoje claramente injustificadas.
E nós, confiantes na justeza da nossa causa, apesar da indiferença e das “resistências”, lá fomos insistindo na nossa causa…
e assim se foi fazendo história na divulgação desta filha da terra…»
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Notas:
[1] conferir in Folha Popular de Arranhó, II série, de Out-Nov de 1984.
[2] idem anterior
[3] idem anterior
[4] Dom Francisco Gomes do Avelar (1739-1816), natural do Mato, Calhandriz, membro da Congregação do Oratório de São Filipe de Néri, notável Bispo do Algarve.
[5] conferir in ‘Reconciliação: Fernando Luís Barreiros dos Reis (1950-1974)’, Postal Nº 422, de 19 de Abril de 2022.
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