Pela sua importância para a história e tradições arranhoenses, oferecemos a todos vós neste Postal a transcrição do texto mais antigo que conhecemos, até ao momento, sobre a lenda de Nossa Senhora da Ajuda.
O texto é muito rico de pormenores, não só sobre a lenda, mas também sobre as circunstâncias da época, e, as tradições logo criadas desde os primeiros tempos. É um precioso texto do séc. XVIII, recolhido por um paciente e rigoroso frade, de seu nome Frei Agostinho de Santa Maria, o que revela muito interesse pelos pormenores e por indagar tudo o que era possível ouvir e coligir sobre cada lugar e cada Imagem venerada.
O autor era ex-Definidor Geral da Congregação dos Agostinhos Descalços “deste Reino”, e natural de Estremoz.
O lindo texto sobre Ajuda vem integrado no Título L (capítulo L), do Livro II, da sua obra grandiosa a que deu o título de «Santuário Mariano e História das Imagens milagrosas de Nossa Senhora, e das que milagrosamente aparecidas, em graça dos pregadores e dos devotos da mesma Senhora». [1] Na época eram assim longos e descritivos os títulos dos livros.
O Tomo Segundo da obra, como é referido na capa, é dedicado “às Imagens de Nossa Senhora que se veneram no Arcebispado de Lisboa”.
A Obra original é consagrada e dedicada à “Majestade do Sereníssimo Rei Dom João V, de Portugal nosso Senhor”, e foi publicada em Lisboa, na Oficina de António Pedrozo Galrão, “com todas as licensas necessárias” no ano de 1707.
Ora aqui vos deixamos a nossa transcrição completa do original fac-similado, para que possam ler e assim também ajudar à divulgação e preservação da tradição:
«Nos limites do mesmo lugar de Bucelas, entre a freguesia de Santiago, e o mesmo lugar de Bucelas, mas já no território da Paróquia de São Lourenço de Arranhó, tudo termo da Cidade de Lisboa, é venerada em sua ermida, uma devota imagem da Rainha dos Anjos, debaixo do título da Ajuda: cujos princípios se referem assim desta maneira:
Guardava uma pastorinha algumas ovelhas naquele território que fica referido e valendo-se a amorosa Mãe dos pecadores da sua inocência e sinceridade para comunicar os seus favores àquela terra, lhe apareceu e falou, mandando-lhe que fosse a seu pai e que lhe dissesse lhe edificasse naquele lugar uma ermida.
Assim fez a pastorinha como a Senhora lho ordenara, dizendo-lhe que uma mulher muito formosa lhe mandava que lhe levantasse naquele lugar uma ermida. Mas o pai, que dizem se chamava Afonso Annes, desprezando a embaixada, a tratou em cima com grande aspereza de tonta e de simples, e que não sabia o que dizia. Calou-se a pastorinha à vista da repreensão. No dia seguinte encaminhando o seu pequeno rebanho ao mesmo sítio, lhe tornou a aparecer a Senhora, que segunda vez a mandou que fosse dizer a seu pai o mesmo que lhe havia dito. Também desta segunda vez se não deu por entendido. E como a Senhora aparecesse terceira vez à pastorinha, e a mandasse, a que fosse a seu pai e lhe dissesse, lhe fundasse ali uma Ermida, ele, já por divina inspiração e piedoso destino, advertindo que aquilo poderia ser alguma coisa de Deus, disse à filha, que dissesse aquela mulher que lhe falava, que naquele lugar não havia água, e que se queria se fizesse o que mandava, desse água para a obrar. Assim fez a pastorinha, dando à Senhora (que se dignou de lhe tornar a aparecer) a resposta que seu pai lhe dera.
E depois que o pai da pastorinha despediu a filha, foi por curiosidade seguindo seus passos, e viu que a menina estava levantando uma pedra, e viu juntamente que debaixo dela saía em continente um grande jorro de água muito clara e cristalina; porque lhe devia dizer a Senhora que levantasse aquela pedra, e sairia a água para que seu pai se resolvesse a fazer o que ela lhe mandava. Vendo o pai (que também devia ser virtuoso) a maravilha, foi para a menina, e com lágrimas a abraçou, julgando-se por ditoso de que a Rainha dos Anjos lhe quisesse fazer um tão grande favor, como o escolher a sua filha para publicar a sua vontade e os efeitos da sua clemência para com aquela terra. Pediu-lhe muitos perdões de a haver injuriado de palavras e de lhe não dar crédito à embaixada da Senhora.
Com a vista desta maravilha se resolveu o lavrador a dar princípio à Casa que a Senhora mandava se lhe edificasse, e como era freguez da Paróquia de Santiago dos Velhos, determinou fazê-la da estrada para cima, que é por onde se divide a freguesia de São Lourenço; mas como a vontade da Senhora era ser venerada e buscada naquele mesmo sítio, tornou a aparecer à sua devota pastorinha, dizendo-lhe que a sua vontade era se edificasse a Ermida naquele lugar que lhe assinalara (que fica distante da fonte coisa dum tiro de espingarda). Manifestada a vontade da Senhora, se tratou de dar início à obra, como com efeito se executou. O pai da pastorinha deu o sítio, e outros devotos que se agregaram, concorreram com os materiais. E como a Senhora começou a obrar logo infinitas maravilhas, com as esmolas que os fiéis ofereciam à Senhora, em agradecimento de seus favores, se poude acabar e aperfeiçoar a Ermida com grande brevidade.
Nesta Ermida foi colocada a Imagem da Senhora, onde se continuaram mais copiosamente os efeitos da sua piedade para com os homens, fazendo-lhes favores sem número, porque os enfermos achavam saúde, e os mais alívio em qualquer trabalho; ou queixas que padeciam, de forte que com o favor da Senhora da Ajuda tinham favores, consolações e remédio em tudo de que padeciam.
Foram os Eremitães que cuidavam da Casa Da Senhora até aqui os descendentes dos pais da pastorinha e os de sua geração. E dizem que pertencendo uma pessoa à ermitania, depois de estar nela, lha tirara outra por sentença, por mostrar descendência de Affonso Anes. Julgando-se que enquanto houvesse da sua geração que o fosse, lha não poderiam tirar.
Não se pode averiguar o ano em que a Senhora apareceu à pastorinha. E esta Santa Imagem de pedra, tem de estatura três palmos, e tem o Menino JESUS nos braços. Afirmam ser obrada pelos Anjos, e confirmam-se mais nesta consideração por ser de uma escultura tão perfeita, que parece não poder haver homens que pudessem fazer uma tão perfeita e devota Imagem. Desde os seus princípios a começaram a adornar com vestidos muito ricos, mas como lhos não podiam acomodar de forte que se pudesse bem ver a Santa Imagem, porque só a cabeça e o rosto se lhe via, um devoto para remediar este inconveniente, fez que se estofasse a Senhora, o que fez com grande perfeição como hoje se vê em seu altar.
Celebra-se a sua festa no dia da Natividade da mesma Senhora, a oito de Setembro. Na sua Ermida se vêem colocadas muitas memórias dos favores que faz aos seus devotos, em mortalhas e outros sinais de cera, e outros muitos que são troféus que a Senhora alcançou contra a morte e enfermidades. Não consta o modo em que a Senhora apareceu nem o lugar onde a colocaram enquanto se lhe fundou e erigiu a sua Casa, que não deixaria de haver nisto muitas circunstâncias dignas de ponderação e nisto se vê ser muito antigo o aparecimento da Senhora.»
Notas:
In Santuário Mariano e História as Imagens milagrosas de Nossa Senhora, Tomo Segundo, de Frei Agostinho de Santa Maria, Ano de 1707.
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